7 de fevereiro de 2009

Ucanhe: Uma tradição moçambicana que a natureza encurta

UCANHE: Uma tradição que a natureza encurta Janeiro e Fevereiro são os meses mais aguardados pelos apreciadores do ucanhe, a bebida tradicional feita do canhu. É frequente ver-se autênticas romarias sobretudo a áreas rurais e peri-urbanas de Maputo e Gaza, as províncias em que abundam os canhoeiros, tudo para se degustar e consumir uma bebida apetecível e breve. Depois da produção, o consumo do ucanhe obedece a certas formalidades, incluindo a “inauguração da época”, momento em que os apreciadores da bebida juntam-se em determinada comunidade, regra geral em casa de uma autoridade local. Rituais simples, como o “kuphahla”, precedem a partilha da mágica bebida pelos presentes.
Este ano, em Maputo, a abertura da “época do canhu” teve sábado lugar em Xitevele, no distrito de Boane, numa cerimónia em que também participou o Presidente Armando Guebuza. Num ambiente despido de formalismo, o chefe de Estado e alguns ministros, diplomatas estrangeiros em serviço no nosso país e outras individualidades juntaram-se à população de Xitevele e de regiões circunvizinhas, mobilizadas para esta festa. Em tempo de festa – porque a época do canhu é breve – não vai para além das seis/oito semanas –, o Presidente Guebuza saudou a tradição, “porque é nossa cultura”. Entretanto, algumas das dificuldades com que se batem os moçambicanos não se devem apenas à falta de trabalho. É por isso que no momento do “kuphahla” a autoridade local Xavier Matola, ladeado do Presidente Guebuza, pediu aos antepassados chuva, paz e prosperidade. Guebuza – apesar de ter sublinhado quando falava às centenas de pessoas que a que se juntou naquela localidade que “hoje não é dia de discursos” – fez questão de incitar os presentes ao trabalho. “É bom estarmos aqui a desfrutar da nossa cultura, mas para que esta alegria seja repetida todos os anos devemos cultivar os nossos valores de povo lutar para vencermos os obstáculos com que nos deparamos hoje. A pobreza é um desses obstáculos e temos, todos nós, que lutar para vence-la”, disse o Presidente. A “época do canhu” junta centenas de pessoas em várias outras comunidades de Maputo e Gaza onde abundam os canhoeiros. Abundam canhoeiros e abunda a bebida, como foi possível ver-se em Marracuene, na segunda-feira, data em que se assinalava o 114º aniversário da batalha ali ocorrida em finais do século XIX opondo chefes guerreiros locais às tropas invasoras portuguesas, ora em campanhas militares para a ocupação de Moçambique. Enquanto jorrar o ucanhe, continuar-se-á a ver as procissões de gente que parte sobretudo do meio urbano, que representa um certo poderio material sobre aqueles a quem se vai juntar, nas pobres zonas rurais em que se fabrica a bebida. Essas romarias acabam sendo a única época em que se juntam a gente do meio urbano – que no seu meio se deleita consumindo whisky, vinho, cerveja..., comendo o que simplesmente lhe apetece – e a do rural, mais habituadas a partilhar consigo mesma as frustrações pela falta do que comer, porque as lavouras viram apenas histórias para contar, já que de resultado prático nada trazem devido às adversidades climatéricas com que se debatem nos últimos anos os nossos camponeses. Quando a época passar, ficarão as recordações do dia ou do fim-de-semana em que uns foram ao campo beber ucanhe. E que outros, os que lá habitam, o degustaram aos potes e por dias a fio. Mas antes que a época passe mesmo à memória, porque presente, é necessário que não se esqueça que, tal como o canhu, os cereais, os tubérculos e os legumes são colhidos. A diferença é que a estes se deve semear, depois de se trabalhar a terra – num trabalho que deve ser diário, mesmo na época do canhu. Este é uma espécie de dádiva divina, que vem sempre em Janeiro e Fevereiro, independentemente da lavoura ou das condições atmosféricas. Gil Filipe
Maputo, Quarta-Feira, 4 de Fevereiro de 2009:: Notícias