14 de setembro de 2011

Venenos de Deus, Remédios do Diabo (Mia Couto)


Um rio onde as águas se separam

Venenos de Deus, Remédios do Diabo:

Mais do que palavras, Mia Couto é um escritor que nos transporta ao avesso, ao sonho, ao fantástico, ao extraordinário. Na sua incursão por “Venenos de Deus, Remédios do Diabo”, navegamos também por esse mundo do surreal, que, segundo André Breton, “ é o automatismo psíquico puro pelo qual se propõe expressar, verbalmente, por escrito, ou de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. O pensamento é ditado com ausência de qualquer outro exercício da razão, à margem de toda a preocupação com estética ou moral. Ou melhor: existe outra realidade, tão real e lógica como a exterior, que é a dos sonhos, da fantasia, dos jogos espontâneos do inconsciente que se desenvolve à margem de toda a função filosófica, estética ou moral”. Com Mia, mais do que sonharmos em noites do interplanetário, viajamos em naus por terras intransponíveis.

- Cure-me de sonhar, Doutor.

- Sonhar é uma cura.

- Um sonhadeiro anda por aí, por lonjuras e aventuras, sei lá fazendo o quê e com quem... Não haverá um remédio que me anule o sonho?

- Todos elogiam o sonho, que é o compensar da vida. Mas é o contrário, Doutor. A gente precisa do viver para descansar dos sonhos.

- Sonhar só o faz ficar mais vivo.

- Para quê? Estou cansado de ficar vivo. Ficar vivo não é viver, Doutor.

- É que o senhor entra neste quarto malcheiroso e eu o vejo mais como coveiro do que meu salvador. Aqui, neste leito, eu já vou no meu próprio desfile fúnebre. Págs. (16-17)
O enredo da obra em alusão circula em torno da Vila Cacimba, um espaço mágico onde as verdades transpiram o fantasmagórico.

- Meu marido sempre me foi fiel. Ele dormiu com outras, mas nunca me traiu.

- Desculpe, não entendo.

- Quando ele foi infiel, eu fui infiel junto com ele.

- Continuo sem entender.

- Ele foi infiel, sim. Mas só com as inexistentes.

- Agora, entendo.

- Eu fui, sempre, as putas dele.

- Me putifiquei tanto, doutor. (Págs 33-34)

Em Vila Cacimba, onde se desenrola a história, “O tempo é o lenço de toda a lágrima”. A aventura neste reino processa-se em redor de Sidónio Rosa, médico português que por amor embarca de Lisboa à Vila Cacimba, à procura de Deolinda, uma mulata que havia conhecido num congresso médico em Lisboa.

Nesse percurso, Sidónio Rosa conhece Munda, a mãe-irmã da sua amada; Bartolomeu, o pai-cunhado de Deolinda; Alfredo Suacelência, o administrador de Cacimba; e Esposinha, a mulher de Suacelência.

À medida que entramos na mata, vão-se revelando enigmas. A princípio, Sidónio só procura a sua amada, mas, com o tempo, são lhe reveladas verdades perfumadas: Deolinda não era filha de Bartolomeu nem de Munda, mas irmã desta última e amante de Bartolomeu; na mesma tabela, era amante de Suacelência. Suacelência também amantizava com Munda. Neste triângulo amoroso, cada um conta a sua versão sobre a história de Deolinda...

- Munda não quer acreditar nas evidências.

- E que evidências são essas?

- A causa chama-se Bartolomeu Sozinho.

- Bartolomeu não violou a própria filha.

- Deolinda não era filha, era cunhada dele.

- Munda disse-me exactamente o contrário. Disse que Deolinda até abortara grávida que estava de si. Págs. (173-177)

Mas, a cada vez que o pano escurecia, Sidónio percebia que a sua amada estava morta.

- Chore no meu peito, Doutor. Aqui, no meu peito, é a campa de Deolinda.

É, de resto, sobre esta narrativa aberta - um tipo de narrativa que se fecha no leitor (nos leitores) e não no texto, isto é, o final não é fornecido pelo texto literário, mas por cada pessoa que tiver acesso ao texto, ou melhor, se cada leitor propuser um final, significa que as personagens passam a ser conduzidas pelo leitor, que se transforma numa espécie de co-autor do texto visto, e sobre o mundo do mágico e hipnoses que vagueamos com esta obra.

in: O País, 10 de Setembro de 2011