22 de junho de 2017

A padeira de Favaios que serviu Oliveira Salazar, Rosália Araújo viveu entre os 13 e os 19 anos em São Bento. Estava ao lado do ‘patrão’ quando ele morreu.



Estacionámos junto à Igreja, que os carros não chegam à casa. Fazemos o resto a pé, calcorreando o empedrado que leva a Rosália. Ainda perguntámos onde fica a um morador, que aponta a casa lá ao fundo. Dizemos-lhe que queremos falar com a ‘Rosália do pão’, mas podíamos dizer a ‘Rosália de Salazar’. 

Em Favaios, freguesia transmontana conhecida pelo moscatel, Rosália recebe-nos com um sorriso. Ri sempre, ri muito e também chora ao falarmos do homem que sempre a tratou por "pequena". O homem que mandou no País durante quase quatro décadas e que Rosália serviu mais de cinco anos. Era uma menina de 13 anos quando entrou no austero palacete de São Bento, era ainda menina quando saiu, após a sua morte. Tinha 19 anos e estava ao lado de Salazar quando a enfermeira, em pânico, gritou para os médicos que ele não respirava. Que tinha morrido. 

Quis a coincidência que ela nascesse a 28 de maio de 1951, quando se assinalavam os 25 anos da queda da Primeira República, que abriu as portas ao Estado Novo. Se começarmos pelo fim, Rosália confirma o que sabíamos. Nos últimos dois anos de vida, Salazar pensava que conservava o poder. O Presidente da República Américo Tomás mantinha a farsa e ia regularmente falar com o homem que já não era o Presidente do Conselho. Morreu a pensar que mandava em Portugal e nas colónias. E também Rosália, que mal saía do palacete, desconhecia que o ‘todo poderoso’ afinal já não o era. 

Em casa, António Oliveira Salazar Salazar não era o único ‘chefe’. Maria de Jesus também o era e à sua maneira, enquanto governanta celibatária e companheira de uma vida do ditador. "Tinham um corredor a separá-los. Ela tinha o seu quarto, ele o dele. Ela sentava-se muitas vezes numa cadeira ao seu lado para lhe ler. Foi assim nos últimos anos, mas nunca os vi terem contactos físicos. Acredito que ela morreu imaculada", diz Rosália, que não esconde as saudades da D. Maria. "Tinha o seu feitio, mas era nossa amiga." 

Rosália, que nos recebe na padaria que gere em Favaios, recorda a chegada a Lisboa como se fosse hoje. "Naquele tempo trabalhava-se para comer", diz, ressalvando que os pais lhe proporcionaram apenas a escolaridade que permitia aprender a ler e escrever. "Aos nove anos já amassava o pão, ajudava nas lides domésticas. Não havia luxos". 

Teve poucos anos em que pôde ser criança. Aos 13, a mãe achou que tinha de tomar as rédeas da filha e arranjou-lhe uma solução que não agradou à menina, muito apegada à família e à terra. Estávamos em 1965 quando uma cunhada de Rosália, por intermédio de uma irmã, consegue arranjar-lhe trabalho numa casa em Lisboa. 

Cheia de sonhos mas também de medo da cidade, Rosália pisa o chão da estação de Santa Apolónia. É logo ali apresentada a Micas, a protegida de Oliveira Salazar e concunhada de Maria de Jesus. Micas precisava de ajuda na casa da Parede, alguém cuidasse dos seus dois filhos, António e Margarida, ou Antoninho e Guidinha, como todos os tratavam. Tarefa fácil para Rosália: "Passava horas no jardim andar de baloiço, em correrias com os meninos. Foi o senhor doutor que detetou o atraso do menino, quando ele tinha três anos, e fez questão de pagar do seu bolso as custas de um colégio especial e os cuidados de saúde. Por isso, é que o menino passava muito tempo em São Bento, a residência oficial do Presidente. A Micas também sempre foi tratada como sua filha". 

A décima descendente de uma família de padeiros, que gostava de bailaricos e que fugia sempre que podia da escola, vai passar a contar essas peripécias a Salazar. "Ele pedia-me para me sentar ao seu lado e contar-lhe como era a minha vida em Favaios. Ele ficava horas a ouvir-me".

A sua nova vida tão diferente da que tinha na aldeia não chegava para a distrair do que deixara para trás. "Não era feliz por inteiro". 

Meses depois de ter conhecido as crianças de Micas foi transferida para São Bento e passava a ser uma entre oito criadas. "Por ser a mais nova recebia 100 escudos mas o dinheiro era depositado na Caixa Geral de Depósitos. Só podia mexer quando vinha a casa, na festa da aldeia ou se precisasse de roupa. De longe a longe ia com o meu irmão à Feira Popular, mas a D. Maria ia confirmar se era mesmo com ele". 

Cartas de amor censuradas 

Rosália chegou à calçada da Estrela, morada do palacete de São Bento, em fevereiro de 1965. Estava acompanhada por Micas e foram recebidas pela governanta que deu à menina de Favaios instruções precisas: "Vais conhecer o doutor Oliveira Salazar, trata-o sempre por ‘sua excelência’", disse à criança. Salazar surpreendeu-a, paternal e sem grandes festas mas deu-lhe as boas-vindas. 

O palacete era um castelo infinito com jardins perfumados. Mais tarde, percebe que as flores derretem as feições frias de quem governava com mão de ferro. "Camélias, ele adorava camélias", lembra-se, dizendo que não estavam autorizadas a cortar flores, embora fossem inúmeras as jarras espalhadas pela casa. 

Mal saía de São Bento e ali cresceu, longe de todos. Longe da realidade do seu próprio país - "Não sabia o que era a PIDE. Vivíamos num ambiente protegido, passávamos os dias a cumprir as nossas funções domésticas" - entretidas com as rotinas da casa e os pequenos acontecimentos. "Era ela que selecionava a correspondência que chegava ao senhor doutor. Todos os dias, ele recebia cartas com flores, corações ou formas de lábios. Ela deitava-as fora sem as abrir, ele deve ter pensado que nunca ninguém se interessou por ele", diz Rosália a rir. 

Do Presidente do Conselho tem a ideia da menina que então era: "Salazar era um homem afável. Tinha sempre uma palavra, sempre preocupado connosco. Nunca se esquecia dos nossos anos e lembrava-o à D. Maria. Tenho saudades dele, não do regime. Ainda mantenho a sua foto na minha mesinha de cabeceira". 

Na residência oficial privava com figuras sonantes do regime e da sociedade de então. "O dr. Américo Tomás era quem mais o visitava. Mas também a Amália Rodrigues ou o Eusébio foram várias vezes à casa." 

Há momentos ainda que a "pequena" - como lhe chamava o Presidente do Conselho - não esquece. Como por exemplo, o expediente criado por D. Maria para chamar as criadas: um toque diferente para cada uma delas. Eram oito e no palacete grande tremiam quando ouviam os primeiros sons. As mais velhas eram as primeiras a perceber se estavam a salvo. Rosália tremia até ao fim, pois era a número oito. "A governanta tinha mão severa. Não batia, mas vingava-se com castigos. Era mandona, sempre atrás de nós a ver se fazíamos as tarefas como ela queria, controlava tudo, até o dinheiro que eu mandava para a minha família. A dona Maria era muito agarrada ao dinheiro. Nisso eram iguais, ela preferia que a comida se estragasse na dispensa do que nos dar mais do que estava destinado. Para enganar a fome dizíamos que tínhamos deitado a comida fora porque estava estragada. E levávamos para comermos na nossa camarata". O mesmo faziam às garrafas de vinho que enchiam a garrafeira, ofertas ao Presidente do Conselho. 

Um dos episódios que mostram a autoridade da governanta, mesmo perante Salazar é o das galinhas. O Presidente do Conselho odiava os galinheiros no exterior do palácio mas a governanta via nas aves serventia para a gestão doméstica. "Ele tinha medo dela e calava-se. Lá tinha de gramar com as galinhas". 

Quando foi internado no Hospital da Cruz Vermelha, a governanta passou a comer no hospital, e mandava restos para as criadas. "Não gostava daquilo e comia ovos. Podíamos tirar os que queríamos porque nunca ninguém sabia quantos é que as galinhas tinham posto." 

Saudades da sua terra 

As saudades de casa levaram Rosália a regressar a Favaios. Volta a vestir o avental e a preparar a massa para o pão de cada dia. Maria de Jesus diz- -lhe na partida que lhe escreva caso mude de ideias. Assim fez, meses depois. Cansada da rotina do pão, regressa a São Bento. A governanta aceita-a de volta e paga-lhe a viagem. Eram os primeiros meses de 1967, mas muito tinha acontecido na sua ausência. Maria de Jesus adoecera, o Presidente do Conselho passava por momentos de grande tensão política. Viviam-se tempos delicados mas naquela casa a mesma solidão de sempre. 

Das inúmeras histórias que Rosália recorda, há uma em que o brilho no olhar a trai. "Eu tinha uma infeção nos joelhos porque andava de gatas a limpar o chão e aquelas carpetes tinham que ficar num brinco. Fui duas vezes ao hospital receber tratamento, mas a D. Maria não gostou quando o médico disse que não podia fazer esforços." Até ao dia, continua Rosália, que o Presidente do Conselho percebeu que tinha os joelhos em ferida e lhe perguntou se tinha ido aos curativos. "‘Não, senhor doutor, a dona Maria não deixou’", respondi-lhe. Ele ficou todo endiabrado e mandou a dona Maria ir ao escritório e repreendeu-a", recorda Rosália com orgulho. "Ela ainda perguntou se eu tinha feito queixinhas. Ficou zangada, mas passei a ir todos os dias ao hospital acompanhada por um polícia e o motorista. Sentia-me uma pessoa chique, até se levantavam à minha passagem". 

Para Rosália Araújo, o palácio foi a sua casa. Completa hoje 66 anos e continua a lembrar-se da criança que foi, a que corria pelas escadarias, que se divertia a fazer a ronda pelas guaritas dos polícias, dos serões passados na saleta a assistir televisão na companhia de António Oliveira Salazar, das idas à ópera e do cuidado e vaidade que o senhor doutor tinha nas vestes das criadas. Salazar permitiu-lhe até que um dia fosse ao cinema. "Ele não metia medo. Tenho saudades dele."


Por Tânia Laranjo e Andreia Pinto
Correio da Manhã, 28 de Maio de 2017